Boca doce

Jornal o Globo destaca projeto do quilombo Kalunga, que realiza sonho de pessoas com mais de 35 anos, que aprendem a ler e a escrever

Por Akontece em 14/02/2023 às 10:01:34

Matéria do jornal O Globo

Em 2011, quando teve a oportunidade de se matricular em um telecurso, a professora Domingas Moreira, de 34 anos, não imaginava que sua vida tomaria um rumo tão diferente.

A docente é moradora do Quilombo Kalunga, em Cavalcante (GO), e hoje dá aulas para outras pessoas, que assim como ela, ganharam tardiamente a oportunidade de estudar. Nos anos iniciais de sua jornada escolar, ela sempre teve dificuldades de se manter na escola que ficava longe de sua casa.

Quando finalmente voltou à sala de aula já era mãe, tomada por afazeres de casa, o que também dificultou a frequência e adiou mais um pouco o sonho do coração de estudante. O telecurso foi um divisor de águas na vida de Domingas: ela estudou, e muito, e se formou em educação, com habilitação em artes visuais e música, pela Universidade Federal de Tocantins.

— Essa foi uma oportunidade incrível na minha vida, com ela tudo mudou para melhor. Sinto uma emoção de reconhecimento, de gratidão muito grande ao retribuir a outras pessoas que, assim como eu, necessitam dessa oportunidade para ter esperança no futuro. O conhecimento é libertador. É algo que a gente vê a força de vontade deles em conquistar essa liberdade — diz a professora, que não pretende parar só na graduação, ela ainda pretende fazer um mestrado e doutorado.

A história de superação dos estudantes da região ganhou um novo capítulo na última quinta-feira (9), os alunos com idades entre 35 e 85 anos, se formaram no Ensino Fundamental I.

Eles concluíram os estudos ao longo de 2022 com o apoio do "Projeto Tecendo Saber – Alfabetização e Família", uma ação da Fundação Roberto Marinho, que se uniu à Secretaria de Educação de Goiás, ao Instituto Humanize e ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para melhorar os índices educacionais do município por meio do projeto.

— A fundação trabalha cuidando desses estudantes que estão em defasagem. A gente faz um atendimento com pessoas que sempre foram excluídas. As escolas do município ficam muito longe para os estudantes que trabalham e o acesso fica quase impossível. Esse projeto é algo super importante e que transforma vidas — avalia o secretário-geral da Fundação Roberto Marinho, João Alegria.

Na língua banto, Kalunga significa lugar sagrado, de proteção. No quilombo, local que foi reconhecido pela ONU como o primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil, a educação também é sagrada, estudantes e professores se esforçam diariamente nessa missão que muitas vezes é desafiadora.

As turmas que estão se formando tem, em sua maioria, alunos que nunca foram à escola ou estavam há 20 anos sem estudar (76%), analfabetos ou que escreviam apenas o próprio nome (58%), trabalhadores do campo (82%), mulheres (58%), com idades entre 51 e 70 anos (70%), negros (79%) e na informalidade ou sem emprego (66%). As aulas aconteceram em cinco territórios: Assentamento Órfão, Kasqueiro, Engenho II/Kalunga, Vila Morro Encantado e Povoado São José.

O projeto para a professora Yunara Santos tem um significado especial. Entre tantos alunos, ela ensinou os fundamentos do conhecimento ao próprio pai. Yunara se sente realizada em poder celebrar a vitória de Jaci da Silva, de 54 anos, que foi o representante dos alunos na cerimônia.

— Me lembro do meu pai me contando a história de por que parou de estudar. Com 12 anos, ele saiu de casa e foi trabalhar. É uma sensação inexplicável ver que, de alguma forma, eu estou retribuindo tudo que ele e minha mãe fizeram por mim. Poder voltar para a minha comunidade e contribuir com essas pessoas é uma honra — completa.

Para Jacir, estar ao lado da filha nessa jornada foi essencial para que conseguisse conquistar o tão sonhado diploma de conclusão do Ensino Básico. Além do aprendizado, ele conta que sua autoestima melhorou muito, ainda mais por conviver com outros estudantes que vivem a mesma realidade.

— Eu estava há 36 anos fora de sala de aula e agora quero seguir estudando. Foi um grande desafio conciliar com o trabalho, mas priorizei os estudos. Conseguir me formar é uma grande conquista. E ter a minha filha como professora foi incrível, um verdadeiro presente — diz Jaci.

Cavalcante está entre os dez municípios de maior índice de carência multidimensional de Goiás. De acordo com a pesquisa "Vulnerabilidade Social dos Municípios Goianos" feito em de 2018 pelo Instituto Mauro Borges de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, a região concentra um grande número de domicílios sem banheiro, água encanada, coleta de lixo e energia elétrica.

O município tem ainda o maior número proporcional de pessoas extremamente pobres, menor percentual de trabalhadores com carteira assinada, maior número relativo de mães entre 10 e 14 anos e a maior taxa de analfabetismo do Estado entre a população acima de 25 anos de idade.

Diante dessa realidade, governo e Fundação Roberto Marinho implantaram o Projeto Tecendo Saber no início de 2022, para oferecer a jovens e adultos a possibilidade de escolaridade formal do primeiro segmento do Ensino Fundamental.

Gerente de Ensino Fundamental da Secretaria Estadual de Educação de Goiás, , Márcia Faleiro reforça a importância do projeto para que o ensino chegue as pessoas da comunidade.

A Secretaria dá suporte e toda a orientação mais específica sobre a localidade e também ajuda na logística com os materiais e eventos que ocorrem. Márcia destaca que existem muitas regiões em que os estudantes precisam passar por áreas de rio e outras montanhosas para conseguir chegar à sede do projeto, onde são ministradas as aulas.

— A Secretaria Estadual de Educação e o atual governador tem um olhar diferenciado para a educação. Existem muitas comunidades que ficam mais longe, o que torna mais difícil conseguir acessar e levar ensino. A parceria com o projeto é uma incrível oportunidade de alcançar essas pessoas que precisam e querem aprender, a ter a liberdade de ler e escrever. A metodologia em que o aluno é protagonista também facilitou e torna tudo bem mais interessante. Isso faz com que eles continuem estudando — diz Márcia Faleiro.

As dificuldades enfrentadas pelos moradores da comunidade são muitas. Para chegar à escola que fica em uma fazenda no território de Kasqueiro, a professora Andreia Gonçalves Lima atravessou um rio, com água nos ombros, umas dez vezes durante os períodos de cheia ao longo do ano passado.

— Comecei o ano com um aluno e, à medida em que outros moradores viam o meu esforço para chegar à escola, eles começaram a se interessar pelas aulas e terminei 2022 com 15 estudantes.

Moro a dez quilômetros da escola e não tinha tempo ruim que me fizesse faltar uma aula! — conta ela, que se emociona ao lembrar dos percalços e da persistência.

Para Andreia, seu trabalho não tem preço e que sente estar no caminho certo quando percebe a satisfação no olhar de seus alunos quando eles descobrem que são capazes de ler, escrever, entender um determinado assunto ou fazer contas.

A proposta do Projeto Tecendo Saber, da Fundação Roberto Marinho, é oferecer uma educação de qualidade para reduzir a desigualdade, atuando na educação formal, mas sobretudo, no desenvolvimento de competências básicas de leitura, escrita e matemática.

A partir dessa formação inicial, muitos se sentem estimulados a dar continuidade aos estudos, ampliando o acesso deles à educação. Professores e coordenadores locais planejam estratégias de ensino e aprendizagem, com metodologias que permitam a construção de novos conhecimentos profissionais para que os moradores do quilombo Kalunga possam sonhar cada vez mais alto.

Fonte: O Globo

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