G1
Avanço das lojas digitais internacionais, principalmente as asiáticas, leva empresários brasileiros a cobrar governo federal por medidas para combater suposta concorrência desleal e evasão fiscal. Companhias dizem que seguem leis e normas locais. Apps da Shopee, Shein e AliExpressGetty Images via BBCA chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Planalto levou empresários brasileiros a renovarem seus esforços para tentar fazer frente ao avanço de plataformas de varejo internacionais, em especial as asiáticas, no Brasil.As reclamações não deram resultado na gestão de Jair Bolsonaro (PL), mas a troca de governo abriu uma janela de oportunidade para empresários brasileiros cobrarem providências mais uma vez.Ambos os lados dessa disputa já tiveram reuniões com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), para apresentar seus argumentos.As varejistas nacionais dizem que a competição é desleal, porque as plataformas internacionais não pagam os mesmos impostos e custos trabalhistas e, por isso, conseguem oferecer preços mais baixos.Acusam ainda as concorrentes de praticar um “contrabando digital” e evasão fiscal, ao supostamente se aproveitarem de brechas nas regras e fraudarem vendas para evitar a cobrança de impostos de importação. Isso geraria, pelas contas dos empresários brasileiros, um prejuízo bilionário em perda de arrecadação para o país. As plataformas, que enfrentam acusações parecidas em países como Estados Unidos, África do Sul e Índia, dizem que cumprem as leis e normas locais.Afirmam também que seus serviços possibilitam ao consumidor brasileiro comprar produtos a que não teriam acesso de outra forma, a preços acessíveis, e que têm investido no desenvolvimento do mercado de varejo e de comércio eletrônico nacional.Esse é um tema especialmente sensível em Brasília neste momento, em que o governo Lula precisa lidar com um rombo fiscal e conseguir o dinheiro necessário para tirar propostas de campanha do papel.O novo governo afirmou que uma de suas prioridades para este ano é uma proposta de uma reforma tributária, que deve começar com mudanças em impostos sobre o consumo.A expectativa dos empresários brasileiros é que medidas que tratem do varejo digital sejam anunciadas em breve.O Ministério da Fazenda confirmou à BBC News Brasil que está analisando a questão. “As propostas serão apresentadas após validação interna no governo”, disse a pasta em nota.O avanço das varejistas internacionaisShein virou um fenômeno global de varejoGetty Images via BBCO problema não vem de agora. As empresas brasileiras viram nos últimos anos varejistas digitais estrangeiras, especialmente as chinesas AliExpress e Shein e a Shopee, de Cingapura, abocanharem uma parte do mercado com produtos bem mais em conta.Alberto Sorrentino, consultor especialista em varejo e fundador da Varese Retail, explica que isso ocorreu no Brasil e em outros lugares como um reflexo de acordos comerciais fechados entre países.Estes acordos facilitaram o comércio eletrônico entre fronteiras, ou cross-border, no jargão do mercado, e a venda de produtos nestas plataformas diretamente para consumidores internacionais.Sorrentino aponta que Brasil e China firmaram um acordo bilateral em 2017 e que as plataformas chinesas tiraram proveito disso. Mas o mesmo movimento não ocorreu no sentido contrário, apesar de as empresas brasileiras terem a mesma oportunidade à mão para vender diretamente para os consumidores chineses.“Mas elas não tiveram o apetite, e a pandemia atrapalhou com o fechamento da China. O fato é que as empresas chinesas investiram. Não só elas, mas a Amazon também, a Shopee começou a atacar mercados emergentes e, mais recentemente, a Shein, que se tornou um fenômeno global”, diz Sorrentino.As plataformas internacionais passaram a ter sites e aplicativos em português, a dar assistência aos consumidores brasileiros, melhoraram a logística para encurtar prazos de entrega, fizeram campanhas publicitárias e passaram a oferecer produtos de vendedores locais.“Isso aumentou a confiança nestas plataformas, e o consumidor começou a gostar e a se apegar a elas. Aí, escalou muito rápido”, afirma Sorrentino.As compras cross-border mais do que triplicaram entre 2018 e 2021, de acordo com o Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), uma associação de empresas do setor.Dados da consultoria NielsenIQ Ebit apontam que essas transações passaram de R$ 7,7 bilhões para R$ 36,2 bilhões neste período. O IDV calcula que o cross-border já representava 16,5% do varejo no Brasil em 2021, e Sorrentino diz que elas explodiram a partir daquele ano com o crescimento do comércio eletrônico, que virou a alternativa para fazer compras com as restrições de circulação impostas por causa da covid-19.As transações passaram de 36 bilhões em 2021, segundo dados da NielsenIQ Ebit, e a estimativa é de que tenham chegado a 50 bilhões em 2022. Shein, Shopee e AliExpress são as três principais empresas desse mercado no Brasil hoje, aponta Sorrentino.“São números importantes, muito grandes. Isso começou a representar uma concorrência brutal para as empresas brasileiras e gera agora essas reclamações legítimas de falta de isonomia e de desvantagem competitiva, por não haver o mesmo tratamento tributário nestas transações.”As queixas dos varejistas nacionaisLuciano Hang, dono da Havan, diz que varejistas internacionais fazem 'contrabando'EPA via BBCAs varejistas brasileiras dizem que, além de ter de arcar com tributos e custos trabalhistas que a concorrência internacional não paga, as plataformas estariam usando uma brecha na lei para evitar a cobrança de impostos.“No passado, as mercadorias que entravam no Brasil sem pagar impostos vinham do Paraguai. O Paraguai mudou para as plataformas depois que os vendedores internacionais, principalmente da China, descobriram um vácuo na tributação”, diz o deputado federal Marco Bertaiolli (PSD-SP), presidente da Frente Parlamentar Mista do Empreendedorismo.As compras feitas entre pessoas físicas no valor de até US$ 50 (R$ 262) são isentas de imposto de importação pela Receita Federal. A regra foi criada em 1980, e, em 1999, o limite, que antes era de US$ 100, foi cortado pela metade.Os empresários brasileiros dizem que as plataformas se aproveitam dessa regra para burlar o controle da Receita e fraudam as informações da compra nos pacotes de entrega, subfaturando os preços cobrados ou informando que as compras foram entre pessoas físicas.Ou que, se um cliente compra vários produtos em um site ou aplicativo, eles chegam no Brasil em pacotes e preços individualizados, abaixo do limite para a isenção.“Nesta regra, não está explicitamente dito que ela pode abrigar transações de empresas para pessoas e vendas de produtos de comércio eletrônico, mas isso também não está regulamentado, então, fica nesse limbo regulatório”, diz Sorrentino.A fiscalização é outro problema que os varejistas nacionais apontam. Um relatório produzido pelo empresário Luciano Hang, presidente da rede Havan, afirma que menos de 2% dos produtos que passam pela alfândega são fiscalizados.A BBC News Brasil questionou o Ministério da Fazenda a respeito disso, mas a pasta não tratou do assunto na resposta enviada à reportagem.Hang é um dos empresários à frente das denúncias contra as varejistas internacionais.Ele convidou Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores, uma das principais centrais sindicais do país, para um encontro no início de março.Patah diz que, assim como ficou combinado com Hang, entregou o relatório ao ministro do Trabalho, Luiz Marinho (PT). “Dei uma cópia para ele e, se estiver com o Lula, vou entregar uma para ele, porque nós temos que nos preocupar com tudo que pode prejudicar os nossos membros”, diz Patah.O relatório de Hang diz que o Brasil deixou de arrecadar R$ 60 bilhões no ano passado por causa dos “contrabandistas digitais” e estima que o valor vai passar de R$ 100 bilhões em 2023.O IDV afirma que o prejuízo foi de até R$ 48 bilhões em 2020 e pode chegar a R$ 99 bilhões em 2025.“Nós somos a favor da livre-concorrência, é o mais sadio. O cross-border vem crescendo a números galopantes, de dois dígitos, o que é bom, mas começamos a verificar que não estão cumprindo as leis internas”, diz Jorge Gonçalves Filho, presidente do IDV.Ele afirma que o instituto passou a fazer compras nestas plataformas para provar que há irregularidades e que, “na maioria” dos casos, os tributos devidos não seriam pagos.“Constatamos que estes produtos vêm principalmente da China como sendo de pessoas físicas, mas muitas vezes não são. Você compra o produto e vem subfaturado, sem os documentos de importação corretos, e isso entra aqui em uma quantidade gigante”, diz Gonçalves Filho.O que dizem as varejistas internacionaisAs plataformas de comércio eletrônico internacionais afirmam que não estão fazendo nada de errado e que cumprem as normas.A Shopee, que vende no Brasil desde 2020, acrescenta que as transações internacionais são hoje a minoria do seu negócio por aqui.Mais de 85% das compras no país são feitas de vendedores locais, segundo Felipe Piringer, diretor de marketing da Shopee no Brasil, e 90% das vendas realizadas pelos 3 milhões de vendedores brasileiros da plataforma são feitas por empresas.“A nossa operação cross-border é bem pequena, e a gente segue as leis brasileiras. Por isso, a gente não concorda em estar sendo citado. Tem uma diferença entre a origem de uma empresa e seu propósito, que é o mercado local no nosso caso. Nem todas as empresas que vêm da Ásia são iguais”, diz Piringer à BBC News Brasil.A AliExpress, uma das pioneiras deste movimento no mercado, com 12 anos de operação no país e um site em português desde 2013, afirma que exige que seus vendedores sigam as regras do mercado brasileiro, que orienta os compradores a respeito e que coopera com a Receita Federal.“As plataformas cross-border permitem o acesso a milhões de produtos únicos que não estão disponíveis no país a preços acessíveis e que o consumidor não conseguiria acessar de outra forma”, afirma Bueno.A Shein, que está no mercado brasileiro desde 2020, disse em nota que “seu modelo único de produção, em pequena escala e com demanda garantida, produz produtos de qualidade e acessíveis”.A empresa afirmou ainda “que tem se esforçado também para estabelecer parcerias com diversos fornecedores e vendedores locais”.O que querem as varejistas nacionaisJorge Gonçalves Filho diz que o varejo nacional não quer que as plataformas sejam proibidas de vender no Brasil, mas que atuem sob as mesmas condições das empresas brasileiras.“Escutamos que as plataformas vão investir bilhões no país e achamos sensacional, mas queremos isonomia de competição, porque a indústria e o varejo brasileiro estão sendo prejudicados e perdendo mercado”, diz o presidente do IDV.Sua proposta é que a cobrança dos impostos seja feita no ato da venda pelas plataformas, que seriam responsáveis por cobrar os valores devidos dos clientes.“Não precisa de uma lei específica, mas de normas e regulamentos”, diz Gonçalves Filho.O presidente do IDV diz ter tratado do assunto com o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.“Ele entendeu nossa proposta e pediu providências.”Esta não é a primeira vez que o setor pede que o governo federal faça algo a respeito.Em 2020, a Receita Federal ensaiou uma resposta a estas demandas e disse que lançaria uma medida provisória com novas regras para esse setor. Mas o ex-presidente Jair Bolsonaro vetou a ideia. “Não era o momento certo para uma medida assim, que não era simpática à população, mas ela só é impopular no médio prazo, porque é bom para o país e para a geração de empregos”, diz Gonçalves Filho.Bolsonaro se justificou na época, dizendo que a saída seria uma maior fiscalização e não mais tributação. Mas o varejo não concorda.“Entram cerca de 500 mil pacotes por dia no Brasil pela alfândega, é um volume proporcional para a estrutura de fiscalização. Não dá para imaginar que vamos ter pessoas suficientes para conferir pacotinho por pacotinho”, diz Marco Bertaiolli, da Frente Parlamentar Mista do Empreendedorismo.O deputado defende que a cobrança dos impostos deve ser uma responsabilidade das plataformas, mas diz que o governo também tem a alternativa de desonerar o varejo nacional para equilibrar o jogo.“Não existe um modelo elaborado, mas a Fazenda e a Receita estão estudando e devem apresentar soluções para esse contrabando digital nos próximos dias ou semanas. Seja qual for a solução, defendemos a isonomia. O que não podemos é ter duas balanças e duas medidas e deixar a indústria vulnerável.”