Perfil no Instagram já abordou pelo menos 15 mulheres de outros estados brasileiros desde junho. Meta diz que usuários devem denunciar contas que promovam "atividades fraudulentas". Para advogada, recomendação é evitar expor informações muito pessoais e registrar boletim de ocorrência. Pelo menos 15 mulheres em várias partes do Brasil foram alvo, nos últimos meses, de um golpe pela internet especialmente cruel: um homem as procura em uma rede social para cobrar uma suposta dívida deixada pelo parente que morreu.
Em comum, todas ficaram viúvas ou perderam um filho, e deixaram esse fato conhecido publicamente em postagens online ou por seguirem perfis dedicados a ajudar pessoas enlutadas (veja abaixo como se proteger do golpe e o que dizem as autoridades).
A reportagem identificou vítimas em oito estados brasileiros e conversou com quatro dessas mulheres. Nenhuma chegou a ter prejuízo financeiro, mas todas relatam momentos de terror por conta da ameaça, além do sofrimento de ter que reviver os sentimentos da perda.
O perfil usado no golpe
As vítimas foram abordadas entre junho e o início de dezembro pelo mesmo perfil em uma rede social, mostrando um nome masculino e uma foto de um homem de óculos escuros e boné, abraçado a uma mulher também de óculos escuros.
A imagem mostra o casal de longe, o que dificulta sua identificação, e não corresponde a imagens já publicadas em sites indexados por mecanismos de busca.
Capturas de tela mostram a evolução das informações públicas do perfil no Instagram que tentou extorquir mulheres enlutadas de pelo menos oito estados brasileiros. Ao longo dos meses, o perfil, com postagens restritas a seguidores, alterou o sobrenome e a informação da bio, além de ter aumentado o número de seguidores e perfis que acompanha na rede
Reprodução/Instagram
Ao longo de pelo menos cinco meses, o perfil seguiu no ar com a mesma foto. Em novembro, trocou o sobrenome de Fernando Prado dos Santos para Fernando Xavier, apesar de manter o nome de usuário como “fe_prado03”.
Na primeira semana de dezembro, ele já acumulava 127 seguidores e seguia mais de 300 pessoas, além de continuar buscando vítimas. No fim de dezembro, com 151 seguidores, passou a usar o nome Fernando Rider na bio. O número de publicações continuava o mesmo desde agosto: 3.
Para vê-las e saber mais detalhes sobre que perfis o homem segue ou por quem é seguido, só pedindo para segui-lo.
Sua descrição, em agosto, era sucinta: “Deus por todos.” Depois, em outubro, foi alterada para “Filhos, herança da vida”, ao lado de um coração vermelho. Em novembro, ela foi editada, mantendo apenas a palavra “Filhos” e o coração.
Até esta segunda-feira (26), o perfil seguia ativo, apenas com um emoji de estrela na descrição.
Em nota, a Meta, empresa dona do Instagram, afirmou que “atividades fraudulentas que tenham como objetivo enganar, deturpar, cometer fraude ou explorar terceiros não são permitidas na plataforma e recomendamos que as pessoas denunciem quaisquer atividades suspeitas no Instagram e que acreditem que possam ir contra as nossas Diretrizes da Comunidade através do próprio aplicativo” (leia mais abaixo).
"Se não pagar com dinheiro, paga com a vida"
Passava das 11h de 16 de agosto quando Waldilene Maria, de 55 anos, recebeu e aceitou uma solicitação dele em uma rede social, achando se tratar de um casal de amigos. “Às 15h fui ver a mensagem, estava lá: "até que enfim te encontrei".
Achei estranho, aí ele falou "a gente vai resolver o assunto do Junior, que ele ficou me devendo"”, contou a moradora do Interior de Minas Gerais. “Aí eu congelei, estava sozinha em casa, pensei "que isso, o que tá acontecendo aqui". Aí ele começou a mandar mensagem.”
A conversa logo se tornou ameaçadora: "Agora já é tarde. Agora já "tô" com seu endereço. E, se não pagar o dinheiro que ele morreu me devendo, paga com a vida”, escreveu o perfil, mais de uma vez.
“Não bato, não estupro, não abuso, nem nada. Mas meu revólver faz tudo por mim”, continuou.
“Eu desabei em casa, comecei a mandar mensagem para o meu irmão chorando”, lembrou Waldilene. Ela chegou a receber uma ligação do homem, de um número com código DDD 44, o que levou a Polícia Civil de Itajubá a ajudá-la a confirmar que se tratava de um golpe.
Trechos da conversa que o perfil manteve com Waldilene Maria, na qual ele a ameaça caso ela não pague uma suposta dívida de R$ 800 atribuída ao filho dela
Reprodução/Instagram
Uma semana antes, o mesmo perfil havia procurado Giovannia, uma professora de 40 anos que vive em Natal, no Rio Grande do Norte. Apesar dos mais de 2 mil quilômetros que a separam da cidade de Waldilene, ela também recebeu a mesma ameaça, dando a entender que o suposto credor conhecia seu endereço e havia estado lá.
“Eu fiquei bem assustada”, comentou, preocupada com a facilidade de alguém descobrir sua rotina.
Ainda em agosto, uma doceira do Rio de Janeiro, que pediu para não ser identificada, foi alvo, mas dessa vez por WhatsApp, de um número também com DDD 44.
A empreendedora divulga seu telefone no perfil no Instagram, usado de forma profissional e com raras publicações pessoais, duas delas justamente sobre a morte do marido para a Covid-19, em 2021.
"Meu marido não deixou nenhuma dívida, eu não conheço ninguém com esse nome que a pessoa citou. Pelo palavreado da pessoa, pelos erros de português, pela forma como ele me abordou, então tudo isso fez com que eu desconfiasse de que era de fato um golpe", explicou ela.
Quando teve acesso ao telefone das mulheres, golpista usou o mesmo DDD para fazer ligações ou tentar extorquir as potenciais vítimas pelo WhatsApp
Reprodução/WhatsApp
Ana Paula, de 47 anos e também moradora do Rio de Janeiro, passou pela mesma situação em junho, pouco depois de ficar viúva, após o marido, André Luís, que ela considera seu “amor maior e alma gêmea”, morreu em decorrência de um infarto.
“A primeira vez excluí [a conversa], e na segunda eu bloqueei e não tem conversa escrita, pois foi por ligação. Nas duas vezes eles falaram que meu marido estava devendo R$ 1.500 e que, se eu não fizesse o pagamento, eles iriam me pegar, pois tinham o meu endereço e iam acabar comigo e minha família”, relatou ela.
“Na hora me desesperei, estava muito abalada com a morte do meu marido e, depois, com a ajuda da minha mãe, comecei a pensar que meu marido era muito correto com dinheiro, e por isso não teria dívida. Foi aí que minha mãe disse que era golpe.”
Uma semana antes de abordar Waldilene, que mora em Minas Gerais, o mesmo perfil havia tentado extorquir Giovannia, moradora do Rio Grande do Norte
Reprodução/Instagram
Reconhecendo o golpe
A advogada Gisele Truzzi, especialista em direito digital, explica que esse tipo de esquema costuma ser bastante explorado pela facilidade da aplicação em massa, e por mexer com o emocional das pessoas, evitando assim que elas pensem racionalmente e suspeitem imediatamente.
“Muitas vezes as pessoas acabam conseguindo se abrir um pouco mais na internet, com estranhos, do que com pessoas mais conhecidas”, explica ela.
“Mas a gente tem que ter sempre esse radar ligado, você não tem certeza de quem está do outro lado. A pessoa pode estar se passando por qualquer sujeito, inclusive com segundas intenções, pode se aproveitar de uma situação de vulnerabilidade para aplicar um golpe”, alerta.
Em casos como esse, ela recomenda que as pessoas conversem com familiares ou amigos que, estando mais distante da situação, consigam reconhecer os sinais da fraude.
"Essa pessoa, como não está envolvida na conversa, vai ter um olhar diferente, ver no relato alguma coisa estranha, perguntar por que fulano pediu tal informação, lembrar que não faz sentido a pessoa cobrar."
Giovannia lembra que levou horas após o primeiro contato com o homem até ela retomar a conversa. Antes, ela deixou o trabalho e foi para casa, e então deixou o celular sem wifi conectado ao carregador. Só então conseguiu ler as mensagens, quando estava mais calma.
“Desconfiei que era golpe porque, na hora do susto, fiquei assustada, apreensiva, fiquei tremendo muito, porque ele deu a entender que ele sabia onde eu morava. Só que depois, analisando, vi que ele usou palavras muito vagas: "Você está morando no mesmo lugar?". Mas ele não disse onde. E onde eu estou morando, de fato, quase ninguém sabe. Eu me mudei, mas as pessoas do trabalho do meu companheiro não sabem para onde.”
Waldilene diz que, na hora que viu o nome do filho na mensagem, começou a misturar as coisas. “Você não tem tempo de assimilar o que está acontecendo. Você vai misturando. Comecei a ligar para os amigos do meu filho. Fui ligando, perguntando se sabem que o Junior ficou devendo. Eles falavam "tia, imagina, o Junior não ficou devendo pra ninguém". Nada melhor do que os amigos para falar.”
Da esquerda para a direita: Waldilene com o filho, Junior, Josy com o marido Ricardo, e Ana Paula ao lado do marido, André. As três mulheres vivem em estados diferentes, mas foram alvo da mesma tentativa de extorsão por viverem o luto em seus perfis no Instagram
Arquivo pessoal
Vítima decidiu procurar ajuda
A profissional de educação física Josy Arakawa, de 41 anos, foi abordada em 1º de dezembro. Três semanas antes, ela havia perdido o marido, Ricardo, para um câncer.
“Ele tinha Instagram, mas não postava nada, o que fazia, absolutamente nada. E eu também evitava de postar fotos com ele, era muito raro. Ele não gostava muito de tirar foto. Eu sou professora, na pandemia tive que me expor bem nas redes por conta do trabalho. Mas eu tentava meio que preservar porque ele sempre foi mais discreto, mais na dele. A única coisa que eu postei foi do falecimento dele, uma semana depois da missa de sétimo dia, depois não postei mais nada.”
Na mensagem, o perfil iniciou a conversa perguntando “quem estava resolvendo as coisas do Ricardo”. Quando instado por Josy a revelar de onde o conhecia, respondeu que era “do centro mesmo", fazendo em seguida uma alusão genérica de que era um distrito controlado por uma facção criminosa.
E logo foi o cerne da conversa: "Tô precisando resolver o negócio que ele ficou me devendo aqui. E tenho que constar esse dinheiro com o patrão. Ele não quer saber quem morreu ou não." Para Josy, ele disse que a dívida era de R$ 1.350.
“Na hora eu gelei, aí me deu essa luz de printar e mandar [para os colegas de trabalho]”, explicou ela. Um dos colegas a tranquilizou e a ajudou a perceber o golpe, e bloquear o perfil.
“Eu fiquei desesperada, pensei: "ele vai descobrir onde eu moro, vai atrás do meu filho". A minha sorte é que deu esse estalo. O Ricardo sempre me alertava: "Josy, toma cuidado". Ele sempre martelou, que tinha muito golpista.”
A advogada Gisele Truzzi afirma que o aviso pode soar paranoico, mas também oferece mais segurança.
"Você não vai ficar abrindo detalhes da sua vida com uma pessoa que acabou de sentar do seu lado, então não deve abrir esse espaço no digital", diz a advogada. "Se a gente levantar essa hipótese de que todo mundo pode ser estelionatário até que se prove o contrário, você acaba se resguardando de muitos problemas."
Josy, profissional de educação física de São Paulo, foi vítima da mesma tentativa de golpe pelo mesmo perfil no início de dezembro
Reprodução/Instagram
Vivendo o luto publicamente
Junior, o único filho de Waldilene, morreu há seis anos em um acidente de trânsito. “Mas para a mãe que está de luto não faz diferença, seis, dois, um ano. Meu filho está aqui todo dia.”
A solidão da perda é um dos motivos que a levou a seguir páginas e perfis que falam sobre luto, um assunto que ela não costuma tratar com parentes e amigos. “Pra gente [o luto] não tem data. Pros outros tem, pra gente não”, explicou ela.
A professora Giovannia vive o luto de perder o companheiro há menos de seis meses. A perda foi repentina, com um câncer descoberto quando já estava em metástase, e menos de um ano depois de os dois terem engatado um relacionamento amoroso que já havia rendido planos de longo prazo.
No caso de Ana Paula, a morte era ainda mais recente.
Criadora de uma das páginas dedicada ao assunto, a consultora Sabrina Martins, de 30 anos, diz que se surpreendeu, ao publicar um post de alerta sobre o golpe, pela quantidade de relatos de seguidoras informando terem sido abordadas com uma cobrança de dívida parecida. “Fiquei bem impressionada porque começaram a aparecer mais e mais pessoas, e todas com o mesmo tipo de abordagem.”
Ela criou a página semanas após perder a mãe, em 2020, para ter um espaço para dividir suas angústias. “Não é todo mundo que está com aquela disponibilidade de conversar sobre o tema. Às vezes é um clima pesado, ainda tem muito tabu envolvido.”
Em pouco mais de dois anos, a página já reúne quase 50 mil seguidores, a maioria formada por mulheres.
E a experiência relatada pelas vítimas do golpe indica que, se o prejuízo não foi financeiro na maioria dos casos, nenhuma saiu ilesa emocionalmente.
“O enlutado está vulnerável, passando por uma etapa da vida bem difícil, sensibilizado, já está tendo que lidar uma série de questões, inventário. O luto transforma a nossa vida. Acontecer uma situação dessa aflora muito uma série de gatilhos, e acho até que pode e tende a dificultar o processo, as pessoas podem ficar traumatizadas mesmo.”
Veja como se proteger
Segundo a advogada Gisele Truzzi, é possível tomar medidas para reduzir o risco de ser alvo desse golpe e de agir após a abordagem do golpista:
Buscar apoio de uma rede de pessoas conhecidas, como familiares, amigos ou uma psicóloga ou terapeuta, podem ajudar no processo de luto e reduzir a suscetibilidade a abordagens virtuais de desconhecidos;
Ao interagir com desconhecidos nas redes sociais, é preciso atentar para os sinais que podem comprovar ou não a identidade da pessoa. Um exemplo é fazer a chamada “busca reversa de imagem”, para descobrir se uma foto enviada pela pessoa tem na verdade outra origem, como um banco de imagens, ou algum post de outra pessoa em outra data (aprenda aqui como fazer a busca reversa de imagem);
Outro exemplo é consultar contatos que interagem ou conheceriam a pessoa, e possam confirmar sua identidade;
A legislação também protege os herdeiros de uma pessoa falecida quanto a cobranças indevidas de dívidas. Segundo Truzzi, se uma pessoa morre e deixa dívidas em seu nome, é o patrimônio do falecido que responde pela dívida. “De acordo com as regras do Código Civil, vai ser arrolado todo o patrimônio: móveis, imóveis, ativos. E aí vão separar o que tem patrimônio líquido e o que tem de dívidas. Esse patrimônio vai ser para pagar essa dívida. Se for suficiente, ótimo. Agora, se essas dívidas forem maiores. Se o patrimônio é um milhão e a dívida é um milhão e meio, então esse meio milhão de dívida vai ficar a ver navios”, explica ela. Os herdeiros não são responsáveis pelo pagamento.
Além disso, é preciso que haja algum documento, como um contrato, que seja juridicamente válido para comprovar a existência e legalidade da dívida. Apenas um relato verbal não é suficiente para que essa dívida seja reconhecida.
A advogada explica ainda que as conversas iniciadas pelo perfil golpistas podem incorrer em diversos crimes. “Pode ter o crime de ameaça, se ficar retomando o contato, falar que sei onde mora, você vai pagar de outras formas. Pode também ter uma extorsão, você estar de fato obrigando alguém a pagar alguma coisa. Crime de falsa identidade, um indivíduo se faz passar por alguém sem autorização dessa pessoa. Criar perfil falso, mandar mensagem como se fosse essa pessoa.”
Por isso, a orientação é que as vítimas, mesmo que não tenham pago nenhum dinheiro, procurem a polícia para registrar o ocorrido. “Ao registrar o BO você está fazendo um comunicado do ilícito, está comunicando a polícia que aconteceu, e se resguarda de acontecimentos futuros”, afirma Truzzi. “E pode desencadear um inquérito policial onde a delegacia vai fazer ofício às plataformas de internet envolvidas no caso, para obter dados de conexão do usuário, os dados cadastrais, para saber de fato quem está por trás disso.”
A Meta, por sua parte, recomenda que os usuários abordados evitem responder a perfis que promovam ameaças e os denunciem ao Instagram, usando as instruções dentro do próprio aplicativo. “A conta denunciada não saberá quem a denunciou”, afirma a empresa.
Finalmente, Giselle Truzzi recomenda que as vítimas não cedam e desembolsem nenhum valor mediante ameaças ou insistências de desconhecidos em conversas virtuais, já que a probabilidade de recuperarem o dinheiro é baixa. “Em toda fraude e golpes digitais é muito difícil conseguir ressarcimento da vítima pela dificuldade de comprovação dessas informações. Por isso é preciso ter o alerta sempre ligado.”
A TV Globo procurou as polícias militar e civil do Rio Grande do Norte e de Minas Gerais sobre as investigações das ocorrências registradas pelas vítimas em Natal e Itajubá.
De acordo com a Polícia Civil mineira, o inquérito, que tramita na Delegacia de Polícia Civil em Itajubá, foi remetido à Justiça "com pedido de dilação (aumento) de prazo para realização de diligências" ligadas do trabalho investigativo. "Informações do caso serão repassadas em momento oportuno com a conclusão do Inquérito Policial."
A assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio Grande do Norte informou que as "investigações ainda estão em andamento, não podendo ser dado mais detalhes quanto à apuração, com vistas à preservação do seu êxito".