Uma área protegida no município de Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, foi decretada há mais de 2 anos pelo governo goiano, mas sua implantação está atrasada e pode comprometer a conservação da biodiversidade, economias sustentáveis e a vida de assentados da reforma agrária.
A criação do Parque Estadual Águas do Paraíso foi assinada pelo governador de Goiás Ronaldo Caiado (União Brasil) em 11 de setembro de 2020, no Dia do Cerrado. A reserva tem 5,6 mil hectares e será uma das primeiras no país com gestão compartilhada entre os governos estadual e municipal.
Conforme o decretado, ela servirá à "preservação da área e de sua beleza cênica, ( ) à proteção do patrimônio ambiental e turístico, da geodiversidade e da biodiversidade". Todavia, documentos obtidos e fontes ouvidas por ((o))eco indicam que sua proteção ainda não foi consolidada.
Contratos foram firmados pelo governo goiano desde maio de 2021 para elaboração do georreferenciamento e plano de manejo, combate a incêndios e cercamento da reserva. Mais de R$ 5,4 milhões estariam comprometidos. Os recursos vêm sobretudo da compensação ambiental de lavras de mineração.
Mas a realidade regional é outra, diz Raimundo Pereira, presidente da Associação de Produtores Rurais do Assentamento Sílvio Rodrigues e Região e parte do conselho da reserva. "Está tudo parado e nada é apresentado às comunidades e ambientalistas sobre a implantação do parque", resume.
Com o georreferenciamento, a definição exata dos limites e características do Águas do Paraíso, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pode repassar as terras hoje da União ao estado de Goiás para implantar a unidade de conservação.
Enquanto isso, o atraso ameaça espécies sob alto risco de extinção. Uma das últimas moradas no país do pato-mergulhão são os rios puros e cristalinos daquela região. Como o animal só vive em ecossistemas extremamente preservados, é reconhecido como o "embaixador das águas brasileiras".
"Ele foi escolhido como símbolo do parque numa enquete pública, mas não há medidas efetivas para sua conservação. Não entendemos a falta de compromisso com espécies que necessitam de cuidado urgente", ressalta a bióloga Gislaine Disconzi, coordenadora do Projeto Pato Mergulhão.
Na mesma zona perambulam outros animais típicos do Cerrado, como lobo-guará, veados, tamanduá-bandeira, anta e seriema. Da vegetação, até novas espécies são descobertas pela Ciência, conforme estudo publicado na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
Segundo maior bioma sul-americano, após a Amazônia, o Cerrado é vítima de insustentáveis taxas de desmatamento, queimadas e incêndios. Metade de sua vegetação já foi eliminada. Menos de 9% de seu território é abrigado em parques e outras unidades de conservação.
Paulo Garcia foi presidente do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Comdema) de Alto Paraíso, onde vive desde 1994. Ele avalia que a morosidade na efetivação do parque estadual inibe a geração de empregos com turismo e serviços ligados à conservação da natureza.
"Esse é o grande potencial para aquecer a economia regional. Enquanto isso, urbanização, soja e outras monoculturas avançam ao redor de parques e demais áreas protegidas, inclusive na Reserva da Biosfera do Cerrado e na Área de Proteção Ambiental do Pouso Alto", destaca o ambientalista.
Guiando turistas há quase uma década em Veadeiros, Gabriel Rosa reclama que a categoria não tem assento no conselho consultivo do Águas do Paraíso e conta que praticamente nada foi feito para a sinalização de trilhas e a estruturação de seu uso público.
"Defendemos há anos a unidade de conservação, mas ainda não há portaria, guarita ou banheiros. Turistas usam o mato. Nada justifica isso", diz o afiliado à Associação de Guias e Prestadores de serviços em Ecoturismo da Chapada dos Veadeiros (Servitur).
Na mesma região, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros recebe mais de 70 mil visitantes anuais. Uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) estimou que ele movimenta por volta de R$ 92 milhões anuais, com ecoturismo e serviços associados.
A vida de cerca de 300 famílias assentadas também pode melhorar com o parque estadual. Turistas poderão contratar guias ou comprar produtos locais. Mas, parte da população ainda não têm eletricidade, água ou coleta de lixo. De lá à asfaltada GO 118, são mais de 30 km sobre terra e pontes.
"Como preservar assim? Somos favoráveis ao parque, mas as pessoas no entorno têm que ter dignidade. É urgente resolver isso", destaca Raimundo Pereira, presidente da Associação de Produtores Rurais do Assentamento Sílvio Rodrigues e Região.
Gênesis morosa
As fontes ouvidas por ((o))eco avaliam em coro que o atraso na execução do parque tem conexões com o esfriamento do projeto Gênesis, apresentado pelo governo goiano em setembro de 2021 como um polo de sustentabilidade para o Cerrado, com prédios, museus e teleférico.
Ambientalistas apontaram supostas falta de transparência e megalomania na empreitada, que seria paga com ao menos R$ 4 milhões de compensação ambiental de licenças concedidas à Amarillo Mineração. A empresa extrai ouro em Mara Rosa (GO), a 350 km da capital Goiânia.
"Como não houve aceitação do projeto Gênesis, desde então nada foi feito [para a efetivação do Águas do Paraíso]", resume Gislaine Disconzi, coordenadora do Projeto Pato Mergulhão.
Para o ativista Paulo Garcia, a iniciativa tinha caráter mais comercial do que de motor para ações sustentáveis. "Agora falta vontade política para dar andamento à implantação do parque", reforça o ex-presidente do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Alto Paraíso de Goiás (Comdema).
A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad) não atendeu aos nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem e não esclareceu os leitores quanto às supostas falhas e morosidade na implantação do Águas do Paraíso.
Reforço territorial
A papelada levantada por ((o))eco aponta que 4,3 mil hectares podem ser agregados à conservação regional. Hoje registrada como Reserva Legal de um assentamento, a parcela é indicada para ser protegida desde 2015, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A iniciativa, contudo, foi postergada pela criação do parque Águas do Paraíso e para a remoção de ocupantes. Isso põe em xeque uma área ainda mais rica em espécies do Cerrado, avisa o presidente da Associação de Produtores Rurais do Assentamento Sílvio Rodrigues e Região, Raimundo Pereira.
"Até onças pardas, pintadas e pretas há na área. Não pode conservar só no norte (ver mapa abaixo), para atrair turistas às cachoeiras do rio dos Couros", ressalta o assentado e produtor rural.
"Esperamos que a implantação da unidade seja retomada este ano e que principalmente as terras dessa grande reserva de vida silvestre sejam repassadas pelo Incra para incorporação ao Águas do Paraíso", arremata Bruno Mello, diretor de Políticas Públicas da Fundação Mais Cerrado.
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